Marins-Itaguaré
julho 08, 2008(publicado originalmente em agosto de 2006)
A caminhada entre os picos dos Marins e o do Itaguaré nada tem de excepcional em termos de dificuldades, seja de orientação, seja de preparo físico. Excepcional é o cenário lá encontrado, principalmente para um paranaense acostumado com a exuberância da Mata Atlântica que domina a maior parte de nossas trilhas serranas. Geralmente concluída em três dias, esta caminhada é realizada sob rocha e campo aberto, cenário de rara beleza.
A trilha é percorrida anualmente por algumas dúzias de dispostos montanhistas, felizardos em encontrar por aquelas serranias cumes quase virgens, vistas estonteantes, lances de escalaminhada capazes de fazer tremer os mais destemidos e sorrir os mais valentes.
A travessia é conhecida como Maringuaré ou ItaMar (conforme o sentido em que é realizada, claro), percorrendo os pontos mais altos da Serra da Picada, como é conhecido este trecho da Serra da Mantiqueira, região limítrofe entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais. Está situada situada nos municípios de Piquete e Cachoeira Paulista, para as bandas de São Paulo; e Marmelópolis e Passa Quatro, nas Minas Gerais. Observando-se o Maciço dos Marins desde o Vale do Paraíba (onde corre impassível a Via Dutra e repousa o caos decorrente de aglomerações urbanas em que as cidades se confundem umas com as outras), tem-se já alguma noção do que aquela montanha representa. Um amontoado de rochas elegantemente erguendo-se sobre as plácidas terras do interior paulista. Uma afilada crista une os Marins ao Itaguaré, recortando contra o céu uma legítima representação do que seria a caminhada.
Vamos a ela então. Porém é preciso retroceder um pouco no tempo para que tudo fique o mais claro possível para o leitor.
Havia algumas semanas que eu, juntamente com meus amigos Juliano (também conhecido como Pereira ou Juju) e Natan (este sem apelido que seja digno de ser citado), planejara esta caminhada que habitava meus sonhos há alguns anos. Tudo acertado com relação às datas e à logística, parti juntamente com o Pereira na sexta-feira dezessete de março de dois mil e seis rumo a São José dos Campos, terra de más lembranças, onde trocaríamos de ônibus rumo a Itajubá, nas Gerais. A idéia era encontrar o Natan no início da estrada de chão que nos levaria à base dos Marins. Natan estava na região havia alguns dias, percorrendo o Itatiaia. Por lá ele tentaria encontrar alguma condução que nos transportasse desde Itajubá até o Morro do Careca, já na casa dos 1800 metros de altitude e que nos evitasse tediosos dezoito quilometros de estradas rurais.
Partimos de Curitiba às nove e quarenta da noite carregados com rações para quatro dias chegando em São José dos Campos por volta das cinco e vinte da madrugada. Lá fomos informados que o ônibus para Itajubá não percorreria a estrada que queríamos. Esta condução fazia um caminho diferenciado que não nos deixaria no ponto desejado. Imprevisto! Porém, já sabedores que o Natan se encontrava em Cruzeiro e rumaria para Piquete onde tentaria um transporte para todos nós rumo ao Morro do Careca, resolvemos tomar um ônibus para Lorena, cidade vizinha de Piquete. Seriam mais duas horas e meia de viagem que na verdade provocaria até mesmo uma antecipação em nosso cronograma previamente estabelecido. Contato telefônico estabelecido com o Natan este veio nos buscar na cidade de Lorena, às margens da citada Via Dutra, em torno das nove da manhã. Com ele estava o Sr. Gilberto que havia concordado em nos levar até um ponto distante ainda 40 minutos de caminhada do Morro do Careca, visto que por lá a estrada seria péssima. Acertados os valores (cem reais para ser exato) partimos exultantes rumo a montanha que se agigantava pelo pára-brisas do surrado carro popular.

Com tempo aberto, sol e temperatura agradável, por volta das dez da manhã saltamos do pobre veículo, despedimos-nos do Sr. Gilberto, jogamos as mochilas às costas e encaramos os quarenta minutos de estrada de chão em suave pendente até o topo do Morro do Careca onde finalmente deixaríamos para trás os últimos resquícios de ansiedade e tensão. Afinal, estávamos com todo o gás, aptos a empreender a ascensão do Pico dos Marins. Este apresentava-se solene, com seu cume principal ora visível, ora obscurecido por nuvens procendentes do planalto mineiro.

Passava um pouco das onze da manhã quando passamos pela placa indicativa do Pico dos Marins e rumamos em direção ao céu. Logo no início foi possível perceber que teríamos companhia mais adiante. Como o terreno é amplo e aberto, podíamos observar lá no alto, alguns minutos à nossa frente, quatro montanhistas empreendendo a ascensão dos Marins.
Nosso grupo estava com um passo firme e decidido, calculando atingir o cume dos Marins, onde pernoitaríamos, com quatro horas de caminhada. Estávamos bem abastecidos de informações sobre a trilha, com direito à mapas, indicações por escrito coletadas na internet e até mesmo o gps do Natan. Porém, item essencial fora negligenciado: água! Sim, empreendemos a subida sem um pingo de água em nossos cantis (hoje conhecidos como camelbacks…). Durante toda a subida, até o ponto de água que o mapa nos assinalava ingerimos nós três apenas um litro de bebida isotônica do Pereira. Obviamente, nos últimos lances da jornada rumo ao céu e à água, a sede nos afligiu com toda a força que este primitivo instinto permite.

Neste meio tempo alcançamos o grupo de montanhistas à nossa frente. Estavam já pela boa, porém pretendiam efetuar a mesma Maringuaré em dois dias! Cederam-nos alguns goles de água, que nos farão eternamente gratos ao destemido grupo. O “guia” deles era um paulista de origem asiática, que apesar de já ter estado por lá algumas vezes parecia mais desorientado que nós, novatos na região. Passamos por eles e em poucos instantes chegamos a um platô, onde corre o riacho que nos abasteceria e seria de onde partiríamos definitivamente ao cume que se apresentava à nossa frente. Pouco menos de três horas de caminhada até então e chegamos ao riacho.
Água fresca, porém de cor amarelada que nos saciou sobremaneira. Engolimos algum alimento e saímos na busca do caminho para o topo. O tempo começou a apresentar mudanças, alternando nuvens e céu claro. Nossos toscos mapas, no entanto nos ajudaram a encontrar o rumo certo… Na verdade não havia caminho: era apontar o nariz para cima e pronto. Não levou muito tempo para vencermos a encosta, agora acompanhados de uma leve garoa. Ao atingir o tão sonhado cume fomos presenteados com uma forte chuva, que nos gelou os corpos cansados e nos forçou a buscar abrigo sob uma pedra que mal acomodava uma pessoa, quanto mais nós três. Em breve desistimos da idéia e resolvemos montar as barracas. O Natan, como sempre, estava “auto-suficiente” enquanto eu fecharia dupla com o Pereira.


Enfim, quase chegando à base do Itaguaré, um difícil trecho técnico, que obriga o montanhista a passar espremido por uma fenda. Foi divertido ver o Pereira passar por ali. Se não estou enganado o Natan filmou a cena… Mais uns vinte minutos alcançamos a tão sonhada água, não sem dificuldades para achar a trilha correta, o ambiente estava estranho… No fim das contas tudo deu certo, encontramos um belo local para acampar, em um colo entre dois morrotes perto da água e a uns vinte minutos do cume, onde sabíamos ser impossível acampar.
Pela manhã o tempo encoberto nos desmotivou um pouco. Tomamos um rápido café da manhã, aprontamos as mochilas e partimos rumo ao cume do Itaguaré, com uns lances de escalaminhada que nos surpreenderam um pouco, afinal não esperávamos tanta dificuldade técnica para atingir o cume… Alguns lances são bem expostos mesmo. O cume do Itaguaré é um local estranho, um efeito geológico estranho para nós vindos das montanhas paranaenses, com uma vegetação diferente nos cumes. No Itaguaré é tudo rocha nua e mirradíssimos arbustos. O tampo abriu um pouco e pudemos apreciar um visual é estonteante, afinal estávamos a mais de 2.300 metros de altitude. Fizemos algumas fotos e vídeos, e batermos em retirada, pois não sabíamos o que nos esperava pela frente. Recolhidas as mochilas seguimos o caminho indicado no mapa, em alguns trechos um pouco vago. Assim que encontramos o caminho correto nos atiramos para o planalto mineiro por uma trilha bem batida, agora na floresta de encosta, um caminho tranqüilo de percorrer. Quando menos esperávamos tropeçamos no descampado que marcava o final da trilha e o início da longa jornada de 18 quilômetros até a cidade de Passa Quatro.

Com uma hora de caminhada pela estrada de chão encontramos os primeiros sinais de civilização com algumas casas, criações e (oba) carros. Em uma dessas propriedades perguntamos por alguém que pudesse nos transportar rumo a Passa Quatro. Após muita negociação fechamos um valor de 60 reais para uma viagem cheia de solavancos em uma péssima estrada rural que nos tirasse de lá.

Desembarcamos em Passa Quatro no exato momento em que passava um ônibus rumo à Cruzeiro, já no Vale do Paraíba, onde seria mais fácil conseguir um ônibus que nos levasse a São Paulo. Era nosso dia de sorte e após um tardio almoço às três da tarde partimos às quatro horas rumo à capital paulista.
Eram nove da noite quando embarcamos de volta à nossa amada Curitiba, aqui desembarcando no meio da madrugada.
Com certeza minha melhor experiência em montanhismo, pela beleza cênica do local, pelo companheirismo, pela coesão da equipe… Uma viagem em todos os sentidos.
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